Um carro parado no semáforo aguarda a abertura do sinal para prosseguir viagem. De repente uma freada brusca com um sonoro ruído de pneu fritando no asfalto seguido de dois assustadores barulhos de batida sucessivos.
Era um engavetamento. Um carro em alta velocidade, dirigido por um homem completamente alcoolizado e distraído com o celular que carregava na mão, não percebeu o sinal vermelho e colidiu fortemente contra o carro parado. A batida foi tão forte que este primeiro veículo foi lançado sobre um outro que estava parado na frente, causando um terrível estrago em ambos os veículos.
Todos estavam em conformidade com as regras de trânsito e conduziam seus veículos com parcimônia, exceto o irresponsável criminoso insandecido que conduzia seu veículo em velocidade muito acima da permitida, completamente alcoolizado e utilizando o celular enquanto dirigia.
Nesta cena terrível de engavetamento, todos que estavam no local sabiam que o causador daquela tragédia terrível era o motorista do carro em alta velocidade. Ele poderia ter evitado tudo aquilo se fosse obediente às regras, obediente à lei.
Como por um milagre, embora muitos fossem os danos materiais causados, ninguém morreu.
Inexplicavelmente, a dona do carro que estava no meio que ficou pressionada entre os dois veículos, abriu a sua porta enfurecida. Dava para ver que ela estava muito ferida e machucada e não disposta a deixar as coisas para lá. Ela queria resolver aquele problema naquela hora. Ela estava muito chateada e decidida a se vingar do mal que lhe foi causado.
Todos que assistiam esperavam que ela, enfurecida, partisse para cima do homem bêbado que dirigia o carro que colidiu na sua traseira, porém isto não aconteceu.
Tendo saído do carro, passou a mão em uma pedra grande que estava na rua e partiu para cima do motorista que estava no carro parado na sua frente. Ao ver que o jovem motorista estava desmaiado por conta da colisão e completamente indefeso, passou a agredi-lo com a pedra que achou no caminho. Era uma cena absurda. A mulher ferida e magoada batendo na cabeça do jovem desmaiado no banco do carro. Ela estava tão descontrolada que o agrediu até quebrar-lhe a cabeça, ferindo-o mortalmente.
Ali perto e assistindo a tudo, um pequeno grupo de homens e mulheres que haviam acabado de sair de um culto em uma igreja e que carregavam um livro nas mãos, não entendiam o motivo daquele homicídio, daquela mulher sujar suas mãos de sangue para matar o jovem que nada lhe tinha feito. Ela estava matando uma outra vítima, assim como ela também. Aquele jovem não havia feito nada senão estar vivo, no lugar errado e na hora errada.
Alguém precisava fazer alguma coisa. Os que estavam com o livro nas mãos diziam: – Não mate! O que ele fez com você?
Ao que a mulher dizia: – O fato dele existir me fará lembrar para sempre que um dia este terrível acidente aconteceu. Para tentar apagar este acidente da minha memória, vou exterminá-lo e acabar com sua vida.
Havia outras pessoas na cena. Pelo jeito que se comportaram, parecia que já estavam acostumados com este tipo de coisa. Não se incomodaram com o fato da mulher, vítima do acidente, se transformar em uma homicida para tentar apagar da memória o mal que lhe fizeram.
A vítima do terrível acidente seria agora culpada de tirar uma vida inocente. Para dizer a verdade, enquanto eu olhava aquilo tudo, percebi que um deles estava falando ao telefone e relatando tudo o que aconteceu. Após relatar, ouvia atentamente, como se estivesse recebendo uma orientação. Ao final, disse: – Entendi! Vou ajustar isso.
Rapidamente, dirigiu-se ao lugar e ajustaram a cena do crime. Quem chegasse ali, depois do ajuste, não imaginaria o que aconteceu de verdade.
Tiraram do lugar o carro do homem embriagado que, no meio desta confusão, foi totalmente esquecido. Para dizer a verdade, ninguém falava dele a não ser aqueles que saíram daquela igreja. Parece que eles viram tudo desde o começo e apontavam a este como o grande vilão que deveria ser punido severamente.
O homem que falava ao telefone, começou a mexer naquela cena. Juntaram-se a ele algumas pessoas com celulares. Pareciam estar interessados em noticiar o que estava acontecendo. Percebi que em momento nenhum viraram suas câmeras para o homem embriagado que criou toda aquela confusão.
Uma das pessoas que se juntou ao homem que falava ao celular tinha um uniforme que trazia uma sigla escrita: APVAC. Embaixo, escrito em letras miúdas que li com dificuldade, estava escrito: ASSOCIAÇÃO para PROTEÇÃO das VÍTIMAS de ACIDENTES de CARRO. Estavam muito empenhados em modificar a cena do crime. Entendi que queriam arrumar novos culpados.
Vi que retiraram o carro que bateu na traseira do carro da mulher que depois matou o jovem. Foram tão cuidadosos que apagaram até as marcas de pneus no chão. Apareceu um funileiro que desamassou a traseira do carro da mulher. Impressionante! Parecia que nunca tinha sido amassado. Vi que riscaram no chão algo como se fosse a marca de uma freada de pneu, só que na frente do carro do jovem que foi morto pela mulher.
Sinceramente, agora, parecia que aquele jovem veio andando de ré em alta velocidade, tentou frear mas não conseguiu e bateu no carro da mulher que estava parada no semáforo. Incrível a capacidade deles de montar o cenário e fazer parecer que o culpado era o jovem que morreu espancado com pedradas na cabeça desferidas pela mulher.
Vi que eles estavam muito afrontados e gritavam horrores para os que estavam com o livro nas mãos dizendo que eles queriam o mal da mulher que matou o jovem. O estranho é que eu nunca os vi fazendo isso. Vi que eles tentavam proteger o jovem que foi morto alegando que ele também era inocente e que por estar desmaiado, era completamente incapaz de se defender. Vi que eles querem punição severa, não do jovem, mas do homem embriagado que causou o mal. Foi tudo muito estranho.
Começaram a dizer que a mulher não tinha feito nada e que ela não matou o jovem porque ele já estava desmaiado. Diziam: – Nem sabemos se ele iria sobreviver! Melhor deixarmos todos que querem matar para compensar uma grande dor fazerem isto livremente. – Todos têm direito à vida!, eles diziam, principalmente este homem embriagado que usava o celular quando causou o acidente. Só quem não pode viver é este jovem que não devia estar ali e seria um problema para o resto da vida da mulher que o matou.
Gritavam em alta voz: – QUE TODAS AS MULHERES QUE SOFREREM ACIDENTE DE CARRO POSSAM MATAR OS JOVENS DESMAIADOS QUE SÃO VÍTIMAS COMO ELA, MAS NÃO MERECEM VIVER COMO ELA MERECE. MORTE A TODOS! QUEREMOS GARANTIR O DIREITO DELA DE MATAR PARA ESQUECER!
Tudo muito confuso. Para mim aquilo parecia um pesadelo. Ao final, o jovem indefeso morreu. A mulher, vítima do homem bêbado, matou o jovem indefeso para esquecer que o homem bêbado bateu no carro dela.
Mas e o homem bêbado? Alguém perguntou. Ao que o homem que tinha a camisa com a sigla APVAC respondeu: – Respeitam a dignidade dele. Avisem aos policiais que não podem algemá-lo! O tratem bem! Não esqueçam da audiência de custódia para saber como foi a ação policial. Cuidem muito bem dele porque ele é um cidadão! Não esqueçam que cadeia não é para punir, mas para ressocializar!
Parece que não estavam preocupados em prendê-lo, somente em resguardar o direito da mulher de matar o jovem que entrou em seu caminho.
Por causa da mudança da cena do crime, somado aos que noticiavam de forma distorcida o que tinha acontecido e a outros que defendiam e incentivaram a mulher, muitos que agora passavam ali apoiavam a mulher também. Muitos foram cedendo aos fatos contados por estes, mesmo quando, no seu íntimo, achavam tudo aquilo muito estranho, pois, na verdade, não tinham força ou coragem para resistir a todo aquele aparato montado para justificar a mulher assassina, a não ser aqueles doidos com o livro na mão.
Eles insistiam em dizer que a mulher não ficaria melhor matando o jovem, diziam que ela não esqueceria o acidente que o homem bêbado causou e acabou por acrescentar a si mesma uma culpa que carregaria de ter matado o jovem. Eles falavam que a mira da justiça devia estar sobre o homem bêbado, não sobre o jovem que morreu enquanto estava desmaiado.
Povo chato esses que carregam o livro na mão. Por mais que pareçam retrógrados, reacionários e radicais, ninguém podia dizer que eles estavam ERRADOS.
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